quinta-feira, março 22, 2007

A "SÍNDROME DE CHICO BUARQUE"

por Augusto de Franco - 22.03.2007, 17h31


Este artigo encerra minha trilogia das "síndromes" com as quais tento explicar, ainda que parcialmente, por que as elites brasileiras são as grandes responsáveis pelo retrocesso democrático que estamos vivemos no Brasil.

No primeiro artigo da série falei da "síndrome da China" para mostrar porque as elites econômicas brasileiras resolveram fingir que não estão vendo a escalada do banditismo de Estado promovida pelo governo Lula e pelo PT. Se imaginam que podem ganhar mais com o PAC, todo apoio à Lula, independentemente do fato do lulismo estar pervertendo a política democrática e degenerando as suas instituições. A "síndrome da China" fazia alusão à admiração dos nossos homens de negócios pelo milagre do crescimento do PIB chinês sem se preocuparem com o fato de que a China é uma ditadura. É uma referência à conhecida irresponsabilidade política de boa parte do empresariado. O mercado, aqui como em qualquer lugar, quer saber mesmo é do lucro. Pode-se não gostar, mas essa é a sua "função" (ou melhor, a sua racionalidade). No entanto, os empresários são seres humanos, nascidos neste planeta, não vieram de Marte e – como os demais cidadãos – devem ter responsabilidade política pelo que acontece com a sociedade a que pertencem. Embora possam ser percebidos sinais promissores nesse sentido – pois que uma parte do empresariado começa agora a se preocupar com isso ao perceber que a sustentabilidade de seus negócios depende, em grande medida, do tipo de política que se pratica – não se pode negar que a maioria, pelo visto, ainda não acordou.

No segundo artigo falei das nossas elites políticas , sobretudo daquelas que foram acometidas pela "síndrome da oposição responsável", que explica porque foi possível à Lula se recuperar sem mudar de comportamento. Para se diferenciar dos petistas, querendo ser mais responsáveis pelo governo, fora do governo, do que quando estavam no governo, os tucanos (e, em menor escala, os pefelistas) foram lenientes, coniventes e colaboracionistas com o lulopetismo. Com isso, possibilitaram a sobrevivência do banditismo de Estado e, agora, estão ensejando as condições para a hegemonia de um projeto neopopulista, regressivo em termos democráticos e de longa duração. Não falei dos setores pragmáticos, das agremiações que foram constituídas para vender legendas, das gangues políticas tradicionais e dos partidos que estão com o governo qualquer que seja ele, porquanto tudo isso já faz parte da nossa triste paisagem institucional. É claro que, adotando tal comportamento, nossas elites políticas, em sua maioria, também são (ir)responsáveis e num grau ainda maior do que as chamadas elites econômicas, pela atual regressão política.

Neste último artigo da série vou falar de nossas elites sociais, dos intelectuais e professores universitários, do setor cultural, dos homens e mulheres de mídia, das corporações e movimentos sociais e da nova burocracia associacionista das ONGs (quase totalmente impregnada pelo lulismo: 90% votaram ou fizeram as campanhas de Lula para presidente 8 vezes seguidas nas últimas duas décadas; quem duvidar que faça uma pesquisa).

Esse fenômeno tem a ver com várias coisas. Tem a ver com o "marxismo como profissão" e não apenas como profissão de fé (a "religião laica" adotada nas universidades), mas como meio-de-vida mesmo. Tem a ver com a falta de visão democrática dos militantes dos chamados movimentos sociais (estruturados como correias de transmissão de grupos políticos). Tem a ver com o banditismo sindical (sim, o sindicalismo é uma forma – social, não necessariamente criminal, mas com freqüência também criminal – de banditismo). Tem a ver com a chamada "igreja popular" e com a ideologia da libertação inspirada naquele mesmo utopismo messiânico que inspirou o marxismo-leninismo. E tem a ver com a nova burocracia associacionista das ONGs (pelo menos daquela parte composta pelas entidades constituídas durante – ou logo após – o regime militar, como substitutos organizativos do "partido revolucionário" que não existia; e das que foram montadas como formas de atuação à serviço de abstratos ideais de combate à exclusão social, tal como formulados pela velha esquerda; e isso para não falar das falsas ONGs, urdidas por candidatos ou partidos para divulgar suas idéias ou fazer suas campanhas fora de períodos eleitorais).

O problema é mais profundo do que parece porquanto, para além de todas as razões evocadas acima, tem a ver com os valores que assimilamos e disseminamos nos últimos cinqüenta anos.

Ainda está "no comando" a geração do pós-guerra, que tem hoje de 45 a 65 anos. Em todos os setores da vida social é essa geração – de quem nasceu nas décadas de 40 e 50 do século passado – que detém o controle executivo: dos aparatos do Estado, do grande capital, dos partidos, das organizações da sociedade e das instituições capazes de influir no comportamento coletivo, de ditar os costumes e, sobretudo, de difundir os valores que devem ser seguidos.

No plano cultural, foi a geração que resistiu à ditadura militar, cantando aqueles famosos versos de Chico Buarque – "apesar de você, amanhã há de ser, outro dia..." – quando o bacana era ser de esquerda, ser progressista e revolucionário e não reacionário (a direita, dizia-se, era necrófila). Essa cultura continuou viva, mesmo após a redemocratização. Quando chegou, afinal, aquele cantado amanhã, foi decepcionante. Mas aqueles jovens irrequietos, que há quarenta anos tinham vinte, já estávamos, senão todos, boa parte – agora – com as faces meio enrugadas, carecas e de barbas embranquecidas, sem grandes perspectivas de carreira a não ser no Estado ou em organizações dependentes do Estado e não tão dispostos assim a reconhecer os nossos equívocos.

Os que não participaram diretamente dessa aventura romântica da esquerda foram impregnados, nas universidades, pelos relatos ideologizados que dela faziam os seus mestres "marxistas de profissão" e, sobretudo, foram contaminados pelos seus esquemas de ver a realidade. Assim, a geração seguinte à nossa, que não viveu a história da luta contra a ditadura (e não necessariamente pela democracia, eis a questão!), continuou sendo (de)formada: gente que mal saiu dos cueiros para as redações dos jornais, substituiu logo, no altar montado ainda na casa dos progenitores, a imagem de Santa Terezinha que ganhou da velha tia, por aquele pôster do Che. Sim, porque mesmo depois da queda do Muro e da derrocada da União Soviética, o bacana ainda era ser de esquerda: ao lado do Che alguns colocaram a foto do sandinista Ortega (aquele que no I Congresso do PT, em 1991, perguntou a um membro da direção do partido se não poderia conseguir umas prostitutas...) e, em seguida, por que não?, um cartaz do Lula candidato e, depois ainda, do Presidente Lula com aquela cara de Zé Carioca e as armas da República: uma prova tangível de que o amanhã que os seus professores haviam cantado de fato chegara.

A "síndrome de Chico Buarque" é o nome para essa recusa em admitir que aquelas promessas dos "amanhãs que cantam" foram ilusórias. Que os líderes nos quais apostávamos tudo, uma vez no poder, passaram a se comportar como verdadeiros cafajestes (e também a recusa em admitir que nos enganamos com muitos deles, que já eram cafajestes enrustidos àquela época, como o tal Ortega e outros mais próximos que prefiro não citar aqui por, digamos, delicadeza). Nossas elites sociais não quiseram passar recibo da sua ingenuidade (enganadas que foram por bandidos oriundos do movimento sindical e por outros, de organizações militaristas antidemocráticas), porém, mais do que isso, não quiseram admitir que gastaram boa parte da sua vida apostando errado. Essa, aliás, é uma das razões práticas da incrível resiliência da idéia de esquerda. O projeto naufragou em todos os lugares do mundo em que foi tentado, mas, mesmo assim, numerosos ex-militantes (e inclusive simpatizantes) da esquerda não querem dar o braço a torcer pois que avaliam – incorretamente, registre-se – que tal soaria como uma confissão de inutilidade das suas vidas.

Isso no que tange à parte chamada "progressista" das nossas elites culturais. A outra parte, composta pelos "reacionários" ou "de direita", parece não ter sido assim tão presente nas instituições que exerceram grande influência sobre o pensamento político das gerações mais recentes. Se formos fazer um levantamento das instituições com influência política, geral ou na base da sociedade, no Brasil, são muito raras as que não entraram na onda do "progressismo".

É claro que há também aquelas elites sociais que poderiam ser caracterizadas como indiferentes, e que assim continuaram – sem fazer grande diferença – em termos da influência exercida sobre o comportamento político coletivo.

De sorte que foi o pensamento "progressista" das nossas elites sociais que acolheu Lula, do qual um bom exemplo é o autor da música "Apesar de você" (escrita em 1970). Sob o embalo dessa onda, duas gerações inteiras de brasileiros (ou, se quisermos, três: dos nascidos entre 1945 e 1985 – que já puderam votar em Lula em 2002) aprenderam que era preciso recusar a ditadura mas não aprenderam o que era necessário para construir a democracia. Os que nasceram nas décadas de 1940 e 1950 e entraram na universidade nos anos 60 e 70 foram induzidos a rejeitar o imperialismo norte-americano, a admirar a União Soviética ou a China ou Cuba; mas nada de democracia. Com a queda do Muro de Berlim, os que nasceram no início dos anos 70 e entraram na universidade a partir de 1990, foram "educados" a rejeitar o novo satã chamado neoliberalismo (durante a década de 1990 a academia resolveu fugir do mundo para constituir-se quase exclusivamente como palco de uma nova cruzada ideológica contra o "Consenso de Washington" e contra, é claro, seu suposto representante no Brasil: o governo FHC); mas, igualmente, nada de democracia.

Lula começou a surgir publicamente em 1980, na luta contra a ditadura. Durante 20 anos sua figura, mítica, exerceu um poderoso fascínio sobre nossas elites sociais, sobretudo sobre nossos expoentes culturais e intelectuais, na música, no teatro, no cinema, nas artes plásticas, nas letras e também nas universidades e na imprensa. Quem poderia ser contra esse humilde operário, esse novo "David" que afrontou o poder militar apoiado apenas em sua autêntica liderança? Não haveria de ser o autor de "Apesar de você".

No entanto, foi uma decepção. Sim, Lula revelou-se muito ruim. Até Chico Buarque (pode não dizer, mas) percebe. Mesmo assim, vota nele. E continuará votando enquanto houver eleição (e ele – o eterno candidato – for, é claro, candidato), justificando que não há alternativa... ou que é possível admitir tudo, menos a volta do neoliberalismo! Vejam que para tal cultura o neoliberalismo é um mal, um contra-valor, mas a democracia não é um valor: se tivessem de escolher entre o neoliberalismo e algumas restrições à democracia, ficariam com a segunda alternativa.

Como disse certa feita outro Buarque – o Cristovam – referindo-se à tolerância de parte da militância do PT e dos intelectuais com a corrupção do PT-no-governo: "todo esse pessoal que justificou a corrupção como uma necessidade do governo também justificará o autoritarismo como uma necessidade do governo" (confiram, vale a pena, a curta e contundente entrevista concedida por Cristovam à Eugênia Lopes, no Estadão, em 2 de novembro passado). Acrescentando que "existem muitas formas de ser autoritário, os ditadores e os manipuladores e o Lula se enquadra nos manipuladores", Cristovam Buarque foi direto ao ponto. Tais como os ditadores, os manipuladores também enfreiam o processo de democratização; os primeiros suprimem-no abertamente, enquanto que os segundos fazem o que estamos assistindo neste momento no Brasil: pervertem a política democrática e degeneram suas instituições.

Acometidas da "síndrome de Chico Buarque", nossas elites sociais "progressistas" fecharam os olhos para tudo isso. Não sendo a volta da direita, dos conservadores, do imperialismo norte-americano ou do neoliberalismo, pode tudo. Para evitar o mal maior, fica-se com os males avaliados como menores: a corrupção, o banditismo, a manipulação clientelista, a centralização, o autoritarismo, o hegemonismo e o neopopulismo podem até constituir graves ameaças à democracia, mas... e daí? De que adianta uma democracia a serviço daqueles que são responsáveis por todo o mal que assola a humanidade?

Eis a pergunta-chave, que explica tudo. A falta de compreensão da (e de conversão à) democracia e a incipiência da sua prática democrática explicam por que as nossas elites sociais – apesar de tudo o que aconteceu – continuaram (e continuarão, por muito tempo) apoiando Lula e o PT